Os mundos internos e externos de Kaio Cesar: O fotógrafo brasileiro, morador de Los Angeles, fala sobre photoshoot com Allie X, criação de autorretratos, edição de imagens e inteligência artificial
Texto e entrevista por Pedro Paulo Furlan.
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Kaio Cesar em auto-retrato.
14h, São Paulo / 10h, Los Angeles. Aparecendo em frente a um ‘backdrop’ praiano, o fotógrafo Kaio Cesar entra na call dessa entrevista vestindo um boné preto escrito “Feminine Energy” em letras brancas garrafais, merch de Cobrah, cantora sueca que já estrelou um de seus photoshoots - vestida de Shrek.
Questionado sobre o processo de criação desse, que é um dos ensaios mais inusitados dele, Kaio explica querer criar “alguma coisa mais fresh, que eu gostaria, como consumidor de conteúdo, ver”. Unindo diversas referências ao seu próprio universo pessoal, o fotógrafo e artista visual conseguiu desenvolver uma visão única que já encantou desde estrelas do reality “RuPaul’s Drag Race”, como Adore Delano, a artistas musicais da cena underground, por exemplo, Dorian Electra e Allie X.
“Gosto de quando a foto tem muita coisa para digerir, mesmo que seja mais simples”.
Nascido no Brasil, Kaio Cesar cresceu apaixonado por cultura pop, mesmo que isso às vezes fosse um obstáculo devido à sua criação dentro da igreja evangélica. “Eu via e, mesmo estando dentro da igreja, eu amava, era aquele sentimento meio contraditório de não posso ver, mas, eu adoro”, conta ele sobre sua maior obsessão, Lady Gaga.
Creditando seu estilo fotográfico a essa sua paixão pela cultura em torno da música pop, Cesar conta que a primeira vez em que se sentiu conectado a visuais foi quando estava assistindo videoclipes. “Isso tem muita influência no que eu quero trabalhar, no meu jeito, tudo que eu faço é baseado no que eu via quando era mais novo”, relata.
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Imagem criadas por Kaio usando The Sims.
Quando mais novo, já apaixonado por visuais, o fotógrafo montava suas próprias cenas e fotografava dentro do jogo The Sims, criando obras que ele não conseguiria fazer na vida real. “Nunca nomeei isso como ser um fotógrafo, tanto que eu nunca percebi que essa era a skill de um fotógrafo até eu virar um fotógrafo”, explica ele.
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Imagem criadas por Kaio usando The Sims.
Kaio mudou-se para os Estados Unidos muito antes de fotografia ser o seu sonho, ou melhor, como o mesmo diz: “Nunca tive um sonho de fotografar, a verdade é bem essa”. Após anos de diversos empregos, seu namorado o apontou a possibilidade de fotografar outras pessoas - anteriormente, ele só fotografava a si mesmo para seu Instagram, “gostava de ter fotos muito bem editadas, aquelas coisas de feed bem queer, sabe?” - o próximo passo, agora, era conseguir uma câmera.
Enquanto trabalhava como entregador de delivery em 2020, Kaio entregou, em uma semana, “muito mais do que no normal”, conseguindo, dessa maneira, economizar o bastante para comprar sua primeira câmera. Aos risos, Cesar conta que, na noite em que seu namorado o recomendou começar a fotografar, eles já fizeram seu primeiro photoshoot, com um lençol preto na parede e eles mesmos como modelos.
“O sonho foi virando uma bola de neve, começou muito pequeno, para hoje em dia ser uma coisa que eu almejo realmente fazer”.
Após fazer ensaios com alguns de seus amigos, Kaio já foi ambicioso: começou a enviar e-mails para diversas drag queens de “RuPaul’s Drag Race” e, entre os primeiros contatos, já conseguiu marcar um shoot para Adore Delano, estrela da sexta temporada do programa. Para capturar a capa do seu EP “Dirty Laundry”, Adore pagou a passagem dele de Boston, onde morava, para Los Angeles, onde começou a fazer novas conexões.
Sobre seus primeiros ensaios, Kaio afirma que foi um trabalho em grupo entre ele e suas modelos: “Eu queria fazer alguma coisa que funcionasse, porque eu precisava me alavancar”. Na mesma viagem, ele conseguiu entrar em contato com a vencedora da 13ª temporada, Symone, e de lá, só foi crescendo, tirando fotos de Kandy Muse, Nicky Doll e outras estrelas do programa quando voltou para Boston.
Para Cesar, começar sua carreira com estrelas da cena drag foi muito importante para ele como pessoa LGBTQ+. Falando sobre a “lavagem cerebral” que passou dentro da igreja evangélica, o artista afirma que ser queer “era algo que eu negava até a morte”, então, estar ampliando as vozes de outras pessoas da comunidade “é fazer justiça”.
“Acho tão importante ter essa representatividade no meu trabalho, porque é a minha vida”.
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Empress Of fotogradada por Kaio Cesar.
“DIFERENTES FACETAS DE QUEM EU SOU”
Pouco menos de um mês antes de nossa conversa, Kaio Cesar revelou as imagens que fez para o ensaio da cantora canadense Allie X. Nas fotos dele, a estética que a artista escolheu para o álbum “Girl With No Face”, com seu fundo vermelho e visuais mais ‘dark’, se mescla com o estilo de Kaio, trazendo ela para seu mundo.
“Queria buscar elementos específicos do que ela estava fazendo já”, conta ele sobre o processo de criação do ensaio, acrescentando: “De maneira a criar alguma coisa que tivesse sentido para mim”.
Capturando diversos ícones da cena underground e queer, além de Allie X, Kaio aprendeu a puxar os artistas para o universo em que ele e sua fotografia vivem - seja por meio de poses, iluminação, ou estilo de edição. Nesse meio tempo, em que começou a fazer ensaios para revistas também, ele aprendeu a alinhar sua estética com outras potências criativas, criando visuais marcantes.
No entanto, a parte favorita de seu trabalho é a criação de seus autorretratos, revela Kaio, apontando que essas obras vieram de “querer criar sem a interferência de terceiros”. Em sua série principal, “Tales of Swords and Shadows”, o artista está criando um universo completo, populado por todas as “facetas de quem eu sou”, e alguns outros personagens.
Colecionando referências que vão desde as “Crônicas de Nárnia”, “porque como eu era crente, a gente não podia assistir Harry Potter”, até as botas medievais da coleção de outono 2021 da Balenciaga, Kaio tem construído uma série repleta de referências à Idade Média, cenários e edições diversas, além de uma história por trás de cada personagem.
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Allie X fotogradada por Kaio Cesar.
“O primeiro que fiz parecia mais feliz, um justiceiro, um rei, príncipe, ele está pisando numa espada”, afirma Cesar, em relação aos personagens que existem em “Tales of Swords and Shadows”, continuando: “Então fiz o gêmeo dele, só que do mal, daí comecei a criar as imagens que são mais azuis, mais cinzas”.
Um destaque da obra do artista é seu olho para a moda, selecionando visuais que combinem perfeitamente com o mundo em que está colocando seu modelo. Para essa sua visão de moda - e a inserção disso em seu estilo fotográfico, Kaio Cesar também credita sua paixão por pop, dando destaque ao início da carreira de Lady Gaga.
“O jeito que ela se vestia era muito artístico, ela não só vestia a roupa, ela era a roupa”, relata, apontando para os visuais mais extravagantes da artista e como ela parecia incorporar novas personas a cada look. Afirmando que leva esta perspectiva para seu estúdio de fotografia, Kaio afirma que “gosto muito de ter isso nas minhas fotos também, gosto que os modelos sejam as roupas”.
“Por isso que eu amo essa série que eu faço, porque a roupa é muito o jeito com que a história é contada”
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Kaio Cesar em auto-retrato.
Como fotógrafo de artistas e também de moda, Kaio aponta que as visões pessoais de outros fotógrafos foram fundamentais para que ele construísse seu estilo próprio. “Fui pegando pequenas coisas, pequenos elementos, pequenos detalhes e juntando com ideias que eu mesmo tive”, aponta, listando algumas de suas referências.
Dando destaque ao trabalho de Fernando Tomaz, conhecido por seus cliques para a Vogue, além de seu trabalho com a cantora Marina Sena, Cesar conta que suas maiores inspirações são outros brasileiros. Puxando diversas referências, o artista - mesmo morando nos Estados Unidos - clama sua própria versão da brasilidade em suas fotos.
DA TÉCNICA À TECNOLOGIA
Ao longo de seus 4 anos de carreira, Kaio evoluiu seu estilo, aprendeu novas técnicas, ampliou seu conhecimento de fotografia e mantém-se aberto a todas as mudanças que vem com isso: “Imagino que, com o tempo, quando eu tiver mais e mais elementos para poder criar, eu vou ter outra estética que vai ser completamente diferente, baseado no que posso trazer para aqueles ensaios”.
No entanto, no momento atual, o artista encontrou uma visão autoral para suas fotos, que, por sua vez, inclui a maneira em que ilumina a foto, posiciona o modelo e, somando tudo isso, edita o resultado final.
Quando questionado sobre sua parte favorita no processo de criação, Kaio Cesar é rápido na resposta: “É a edição, tanto que, geralmente quando eu estou com tédio, eu edito foto”. Usando desse recurso para “transformar essas fotos em arte”, o fotógrafo afirma que sua paixão mesmo é “ir pra casa e fazer as fotos fazerem sentido para mim, com edição”.
“Poderia fazer isso no estúdio, mas, meu prazer é fazer isso na edição, porque é como um quadro em branco”.
Usando, na maior parte das vezes, de um fundo branco, e o mesmo ‘setup’ para sua câmera e sua iluminação, Kaio tira as fotos rapidamente - para ele, a mágica vem depois. “Uma foto com o fundo branco em que a pessoa está bem iluminada, para mim, isso é uma tela em branco para eu poder criar coisas em cima daquilo”, conta.
Nesse processo, o fotógrafo altera o fundo, brinca com as sombras, a coloração (“a parte mais importante”) e a textura, puxando o modelo para o mundo em que sua arte habita. Inclusive, Kaio revela que, anteriormente, tinha até medo do que outros fotógrafos iriam achar de suas fotos: “sentia que iam me julgar de modificar tanto a foto e, daí, eu talvez não seria visto como fotógrafo e mais como editor”.
Mesmo com sua preferência pela edição, o brasileiro sempre está buscando aprender mais sobre a fotografia, pesquisando muito, por exemplo, sobre iluminação, que, para ele, é seu momento favorito da parte manual. Em uma constante jornada de aprimoramento, Kaio Cesar coloca-se sempre aberto a aprimorar sua arte.
No momento da entrevista, uma das ferramentas que ele se abriu a aprender a usar foi a inteligência artificial, tentando compreender como essa polêmico recurso pode fazer parte de seu mundo fotográfico.
“Não tem como negar que infelizmente, ou felizmente, é o futuro, e temos que aprender como lidar com isso”, sobre IA.
Em sua série com temática medieval, “Tales of Swords and Shadows”, o fotógrafo relata como usa a inteligência artificial para completar o mundo que está criando. Para Kaio, o uso de IA não é grande parte de sua obra, ao invés disso, ele utiliza a ferramenta para desenvolver detalhes de suas imagens - por exemplo, em seus autorretratos, ele já usou o recurso para criar sapatos, ou detalhes das roupas.
Para Kaio Cesar, a estética medieval era algo que “eu queria usar nas minhas fotos, mas, não tenho acesso a isso”, então decidiu por desenvolver isso com inteligência artificial. No entanto, ele aponta, é um processo complicado porque “às vezes a IA não entende”, logo, ele mescla essa ferramenta com edição de imagem para criar seu universo.
“Temos que trabalhar entorno dela”, diz ele, mas, deixa claro que a ferramenta ainda existe em uma “zona muito cinza”, apontando como a inteligência artificial puxa inspirações da internet, mesmo sem permissão dos artistas. Para Kaio, aí é o momento em que o recurso se torna assustador para artistas.
“O que acho que falta para a inteligência artificial ficar interessante para nós artistas, é que a inteligência artificial comece a ser treinada por pessoas que querem ajudar a treiná-la, ao invés de, simplesmente, essas empresas bilionárias pegarem várias imagens na internet”, afirma o fotógrafo.
“Isso [IA] potencializa muitas vozes, muita gente que tem muita coisa na cabeça, muita criatividade, mas, não tem o recurso”.