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Peixe difícil de fisgar: Bicuda é o bastião do underground no interior

Após fechamento de eventos, brigas políticas e invasões policiais, a festa continua resistindo, solidificando-se como o centro do underground em Campinas

Texto e entrevistas por Pedro Paulo Furlan.

Fotografia por Karol Fircelly


Campinas, 19h. Em 21 de setembro, a Bicuda abriu as portas para seu aniversário de seis anos, comemorando a data - em meio a um ano conturbado - ao lado de seu público caracteristicamente diverso. Embaixo dos leds coloridos e em frente aos telões brilhantes, a noite foi embalada por muita música, com sets e shows de alguns dos maiores nomes do underground, como Caio Prince, Cyberkills e Miss Tacacá. 


Quem entrava no evento sem saber o contexto da festa, não adivinharia que, em menos de um ano, a Bicuda, chamada assim em homenagem a um peixe de água-doce de difícil captura, já havia enfrentado um fechamento forçado, já sido protagonista em uma grande briga política e perdido o apoio da prefeitura de Campinas.


“É de muita importância para as pessoas que estão em volta, sabe? Estarmos nesse lugar, realmente abrindo oportunidades, e resistindo a todo esse caos”, me conta Victin, o fundador da festa, quando eu pergunto o que o impulsiona a continuar.


Fotografia por Ivi Maiga Bugrimenko


Um dos únicos espaços do underground queer no interior de São Paulo, a zona do 019, a Bicuda existe, hoje em dia, como um organismo vivo de resistência. Em um território tomado pela direita, a festa resiste contra avanços políticos e populares, sobrevivendo sob a intenção de continuar sendo um bastião para artistas e pessoas LGBTQ+.


“Queremos mostrar que Campinas é um lugar em que as pessoas podem se sentir confortáveis, onde os monstros estão liberados para poderem sobreviver”, comenta Mabel, uma das performers e produtoras da Bicuda.

Fotografia por Karol Fircelly


Eliminação do Kardume e invasão das águas


“Sempre achei que essa cidade precisava ter um evento de multiplicidade, que fale sobre expressão”, afirma Victin, em nossa conversa sobre a Bicuda. Criada em 2018, a festa - que surgiu junto a uma rádio para lançamentos de artistas underground - rapidamente tornou-se o local para encontrar essa diversidade que Campinas precisava.


Fotografia por Hyago C.


Ao longo dos anos, o projeto, que começou clandestinamente em barracões desocupados na área industrial da cidade, foi tomando cada vez mais ambientes, conseguindo patrocínios e um grupo crescente de frequentadores. Depois da pandemia, vendo a potência da Bicuda, a equipe decidiu abrir um centro cultural junto à festa: o Kardume.


“O intuito do Kardume foi a gente realmente abrir esse espaço na cidade, ter um centro cultural no qual tivéssemos eventos, oferecêssemos espaço para artistas da região, e que também pudéssemos levar para um lado mais cultural mesmo”, explica Victin.


Fotografia por Ivi Maiga Bugrimenko


Um espaço com bar, CDJ aberta, oficinas e encontros culturais, o Kardume foi um projeto que conquistou muitas pessoas, inclusive artistas que, hoje em dia, integram a equipe de produção da Bicuda. De grande significância política, o espaço continuou em constante crescimento ao lado da festa, até outubro de 2023, quando foi invadido e roubado.


“Entraram e roubaram tudo”, me conta Victin, relembrando o acontecimento: “Literalmente tudo. Foi numa escala muito horrível”. Depois disso, já com as inúmeras dificuldades de manter um espaço como esse aberto, a equipe decidiu fechar o Kardume, especialmente devido ao baque que foi o festival de cinco anos da Bicuda, apenas alguns meses antes.


Em julho de 2023, esse festival, comemorando cinco anos da festa, foi repentinamente fechado por policiais - levando a dívidas financeiras e uma batalha judicial que se estende até hoje.


Fotografia por Ivi Maiga Bugrimenko


Com Linn da Quebrada, Irmãs de Pau, Paulete Lindacelva, Ramemes, Th4ys e muito mais no line, o evento foi planejado para ser o maior que a festa já tinha feito - e, no dia, “estava tudo tão lindo de se ver, a casa cheia, as pessoas transitando”, relata Deltinhu, um dos produtores da Bicuda, que estava presente no dia do acontecido.


“Depois de um tempo, vi que começou a chegar polícia, o Victin ia lá fora, mas, depois voltava, aí chegou uma hora que a polícia realmente entrou no evento”, aponta ele, “Eles falavam ‘Melhor acabar com aquilo lá antes que a gente entre’, então corri em todos os palcos e fui desligando todas as pistas”.


“Os seguranças foram colocando as pessoas para fora, a polícia estava lá, falaram que se não saísse todo mundo, eles iam entrar, bater nas pessoas, foi uma coisa bem agressiva”, afirma Victin.


Fotografia por Ivi Maiga Bugrimenko


Segundo o relato de Deltinhu, ele passou desligando os três palcos, avisando da presença da polícia, enquanto assistia ao público sair do evento, confuso e em pânico. Em frente ao espaço, diversos performers da Bicuda se juntaram para manter a energia positiva, mesmo naquelas condições - Mabel foi uma dessas.


“Sou uma palhaça, preciso tirar humor de tudo”, conta a drag, explicando que, ao mesmo tempo que tentava acalmar o pessoal, também tentava os fazer rir: “Fiquei lá tirando com a galera, e não ajudou muito, a galera ficou puta até hoje comigo, juro”.


“Foi um caos generalizado porque ninguém estava entendendo muito o que estava acontecendo”, aponta ela, afirmando que todo mundo pegou suas coisas e correu para fora, tentando evitar ainda mais repressão policial. Mas, foi após o caos, quando eles tiveram de lidar com os impactos reais, que perceberam o tamanho do problema.


Fotografia por Karol Fircelly


“O festival ficou com 5 horas para acontecer, tinham muitas pessoas para entrar, e aí vem a parte financeira que é um rombo”, o fundador da Bicuda me conta. “A gente tomou um prejuízo de R$390 mil, e eu não tinha esse dinheiro - levou um tempo, mas, conseguimos pagar todo mundo. E isso foi muito importante, aprendi muito”.


Além do impacto financeiro, Victin aponta, a dificuldade foi entender o porquê do festival ter sido invadido. Segundo ele, o espaço onde aconteceu o evento havia assinado um contrato que permitia a festa a ir até às 9h, no entanto, isso foi uma mentira, já que o local só tinha permissão até às 4h, algo que nunca foi citado à produção da Bicuda.


“A casa enganou a gente, nos falaram que a gente tinha que pagar por uma permissão exclusiva, nós pagamos, mas, nunca recebemos esse documento. Hoje, já estamos com um processo, encaminhado, porque as reparações precisam vir, né?”, diz Victin.


Fotografia por Karol Fircelly


Pesca com muitas varas e redes


Em abril de 2024, no entanto, foi quando a Bicuda se viu envolvida em uma briga política que impacta a existência da festa até hoje. A festa, que se construiu em cima da valorização dos eventos na rua, e com apoio da prefeitura, foi inserida em um ciclo midiático causado por um evento aberto em uma praça no bairro de Barão Geraldo


“A gente ocupou vários espaços diferentes na cidade, até acontecer o evento em Barão Geraldo”, explica Victin: “Foi um evento perfeito, maravilhoso, rolou super bem, sem nenhuma intercorrência, até um ponto em uma apresentação do grupo Katy da Voz e as Abusadas, em que elas simularam uma chupeta num dildo e aí um vereador de direita estava lá e transformou isso num caos”.


De acordo com diversos relatos, o dia do evento correu perfeitamente bem, não houve nenhuma complicação. No entanto, logo após, nas redes sociais, a festa estava sendo amplamente criticada por pessoas que nunca ouviram falar da Bicuda, somente por permitir que o trio, formado por três travestis, se apresentasse.


Fotografia por Karol Fircelly


“Foi fechamento da turnê delas, então estávamos muito felizes, achando que dali ia prosperar para outro momento”, comenta Mabel: “Mas, foi um caos, foi literalmente o pânico satânico que Campinas enfrenta com essa falta de entendimento sobre cultura, sabe?”.


As críticas não pararam na festa - a festa, na verdade, foi puxada para um embate político entre a ala conservadora de Campinas, encabeçada pelo atual prefeito Dário Saadi, e a vereadora Paolla Miguel, a primeira política preta e bissexual eleita na cidade. Em meio a acusações de que Miguel seria pessoa por trás da verba que a Bicuda recebia, a festa emitiu um comunicado explicando que a vereadora não tinha nada a ver com o evento.


“A gente sabe que tudo isso faz parte de um grande complô político contra a Bicuda, contra da Katy da Voz e as Abusadas e também contra a Paolla”, aponta Majestade Babilônia, um dos maiores nomes da cena ballroom do interior, produtora cultural e DJ da Bicuda.


Fotografia por Karol Fircelly


“A gente só simplesmente chegou e fez o show, mas, como as pessoas são maldosas, elas usaram isso para atacar a vereadora - e isso eu achei de péssimo tom”, completa a própria Katy da Voz, vocalista do grupo no centro do ataque.


Assumindo os “erros” da festa em relação ao teor da performance, Majestade também comenta algo que é ecoado por todos os entrevistados: “Coisas piores acontecem ao vivo nas ruas de Barão Geraldo, nas ruas das quebradas, nas ruas do centro e ninguém fala nada. É com o nosso público que o povo quer surtar”.


“A gente faz parte dessa política, são nossas corpas nesses espaços”, Victin me diz, destacando que a Bicuda é uma festa política, tanto que a equipe teve de ir testemunhar na Câmara de Campinas. A briga resultou na perda da parceria entre o evento e a prefeitura, além de um boicote com a Bicuda por parte de diversas casas de eventos da cidade.


O caso da festa também motivou a publicação de uma portaria que define que todos os eventos da cidade são obrigados a aplicar uma classificação etária. Sobre isso, Victin opina: “Um prefeito tomar uma atitude de faixa etária em eventos só depois de um episódio acontecer, isso é um absurdo, entendeu? Porque sua secretaria já não fazia isso antes?”.


Fotografia por Ivi Maiga Bugrimenko


Pescado evasivo


Única em seu ecossistema, a Bicuda vê sua resistência como um aspecto fundamental de sua existência. A festa, que ocorre em um ambiente de conservadorismo dominante e limitadas oportunidades, representa um espaço de liberdade queer e livre expressão, um dos únicos no interior paulista.


“A Bicuda tem que continuar existindo e resistindo, exatamente nesse lugar, porque sempre deu essa abertura para nós e os nossos corpos transvestigêneres”, aponta Majestade Babilônia, sobre a importância da festa.


No entanto, o ambiente de Campinas continua sendo nocivo à Bicuda. No último Halloween, a festa - que estava executando uma edição especial dentro da Unicamp - foi novamente invadida pela polícia, que buscava impedir o show da Katy da Voz e as Abusadas.


“A gente já estava pronta para subir no palco, faltava só uns 10 minutinhos, e aí, recebemos a notificação de que não iríamos subir porque a polícia estava lá”, conta Katy. A artista me relata, então, que só subiram no palco mais tarde para uma curta “palhinha”, dançando e cantando um pouco para o público que havia esperado para vê-las.


Fotografia por Karol Fircelly


Sobre o ocorrido, Victin destaca: “Achamos que rolou alguma coisa interna, algum político que fica de olho na gente, denunciou”. E é nesse ambiente que a Bicuda deve continuar com sua trajetória de resistência, continuando a derrubar esses muros.


Celebrando seis anos de existência, a festa abrange a comunidade LGBTQ+ inteira em um território no qual as oportunidades para esse público são escassas. Desde abrir espaço para artistas trans a oferecer um ambiente para a cultura ballroom, a Bicuda está dedicada a não abandonar sua missão.


“A gente nunca pode deitar para o que a sociedade espera ou quer, porque se a gente deita, a gente não existe - e a Bicuda tem que continuar existindo e resistindo”, finaliza Majestade

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