Bruxa Cósmica une a pista com o ballroom em “Vogue Club”: Puxando inspirações do underground, do vogue e de sua vida pessoal, o primeiro EP da artista encoraja a resistência por cima de camadas e camadas de beats
Texto e entrevista por Pedro Paulo Furlan.
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Fotografia por Beatriz Metidieri
São Paulo, 14h. Cantora, compositora, rapper e uma das performers mais aclamadas da cena underground brasileira, Bruxa Cósmica sentou com a Vetor na tarde desse último feriado, 9 de julho, para falar sobre seu primeiro projeto, o EP “Vogue Club”. Situada num dia celebrando a Revolução Constitucionalista, a Bruxa propõe uma nova revolução durante nossa conversa, uma protagonizada por corpos LGBTQIA+.
Com 9 anos de experiência na cultura ballroom - uma subcultura organizada por pessoas LGBT’s pretas e latinas, na qual o ponto central são as batalhas de vogue e os relacionamentos familiares dentro das houses - Victórya Gabrielle, nome legal da Bruxa Cósmica, destaca a importância da resistência dentro da sua arte.
“Me encontrei muito no vogue - esse espaço seguro, de liberdade, de autonomia - porque você constrói seu próprio espaço”, afirma a artista, “Então, minhas músicas, as letras, são muito sobre essas vivências de autocuidado e autonomia”.
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Fotografia por Beatriz Metidieri
Do Vogue ao Club
“A gente ficou dois anos preparando as guias”, conta a Bruxa Cósmica sobre o EP “Vogue Club”, apontando que o projeto nasceu de “uma junção do Lohas trazendo essa referência totalmente metal e do Lym [Dot] trazendo essa pesquisa clubber mesmo”, citando os dois principais produtores envolvidos.
Com seis faixas, “Vogue Club” mistura as diversas experiências, vivências e sonoridades pelas quais Bruxa Cósmica já passeou. Da cena ballroom carioca aos palcos de festas undergrounds como a Mamba Negra, passando pelo seu autoentendimento como pessoa trans, Victórya conta sua própria história de resistência e festejo por cima de batidas que contam com jersey club, techno, funk, vogue beat e latinidades.
Após construir seu espaço dentro da cena ballroom, a artista compreendeu sua necessidade de explorar sua própria musicalidade, “o vogue me reacendeu esse espaço de criar o show completo, criar a full performance”, ela me conta.
Decidindo lançar suas músicas autorais, a Bruxa se aproximou do produtor Lym Dot, criador do coletivo BRUK, no qual estavam envolvidos grandes nomes do underground, como BADSISTA e EVEHIVE. Parceiros criativos desde 2020, a artista e o produtor casam suas pesquisas sonoras, puxando inspirações um do outro.
Mesmo abraçando a sonoridade clubber de Lym Dot, a cantora sentia que seu primeiro projeto ainda precisava de mais algum elemento - e é aí que entrou o produtor Lohas. Parte de uma banda de metal, além de DJ, Lohas completou o quebra-cabeça para a Bruxa Cósmica: “Me aproximei dele nesse outro aspecto meu que é o rock, o alternativo mais instrumental, não só de música eletrônica”.
“Queria falar sobre realidade que venho construindo, não só no vogue, que foi onde eu comecei, que me abriu, mas, principalmente, das festas - e aí produzir músicas que eu gostaria de ouvir em festas”
Conhecida na cena underground por suas performances em grandes festas, a artista afirma que esses ambientes serviram como inspirações centrais para “Vogue Club”, trazendo a sonoridade de seus amigues DJ’s e produtores para seu próprio projeto. Além disso, as festas também se casaram ao vogue nas vivências que ela conta nas letras.
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Fotografia por Beatriz Metidieri
“É sobre a liberdade, que eu gosto de compor”
Quando entramos no assunto da composição de “Vogue Club”, eu aponto as similaridades entre os estilos de composição da Bruxa e o de Linn da Quebrada, especialmente em seu último disco “Trava Línguas” (2021) - em resposta, a artista listou algumas de suas inspirações brasileiras, dentre elas a própria Linn.
“Acho que eu e Linn temos essa proximidade de falar sobre liberdade, apontar sobre a doutrina religiosa, apontar as violências silenciosas, então, eu me identifico muito com ela nesse lugar, na escrita, na narrativa”, afirma a Bruxa Cósmica. Apontando a cantora e compositora Ventura Profana como alguém próximo à sua composição, a artista afirma a importância dessa identificação com outras pessoas trans.
“São pessoas trans, né? Acredito que também é sobre isso, sobre a liberdade de identidade, de comportamento, que eu também gosto de compor”.
Identificando-se como uma pessoa não binária alinhada ao feminino, por isso os pronomes ela/dela ao longo do texto, Victórya relata que foram suas experiências como pessoa trans ou ao lado de outras pessoas trans que a inspiraram para compor as faixas do EP.
Em “ASFIXIA”, por exemplo, a cantora inicia a faixa com “Se apanhar, vai levantar e ser resistência”, baseando esse verso em uma vivência que teve ao lado de um ex-namorado, que era um homem trans.
“Foi realmente um desabafo, principalmente ‘Asfixia’, que surgiu através de uma violência que sofri na rua, com outra pessoa trans - junto nesse espaço que fui defender ele, eu também apanhei”, conta Bruxa, explicando a rima: “Posso até apanhar aqui, resistindo contra seu preconceito, sua violência, mas eu não vou sair daqui”.
Criada dentro da igreja, espaço onde ela começou a cantar, a Bruxa Cósmica também me conta que o EP nasceu como uma maneira de resgatar essa arte que nasceu em um espaço repressivo e trazer para um ambiente de liberdade.
“Criar perspectivas de liberdade, de aceitação [...] me inspira muito a compor, me inspira a falar sobre isso para que pessoas que vem de onde eu vim, que sentem o que eu sinto”.
Estendendo sua crítica a todas as organizações religiosas, a artista aponta que sua luta é “contra a manipulação”, contra “esse sistema capitalista religioso, que usa o nome de um deus para manipular e para assegurar que as pessoas fiquem ali, com medo, com traumas”.
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Fotografia por Beatriz Metidieri
“Eu sou uma e muitas”
Nascida no interior de Minas Gerais, Victórya Gabrielle primeiro se entendeu como mulher lésbica - perspectiva que foi mudando ao longo de sua vida, com seus relacionamentos com outras pessoas trans - e já sofreu com a resistência contra a sua identidade desde nova.
Procurando por espaços de acolhimento, a artista encontrou o ballroom em 2015, aprofundando-se nesse mundo após descobrir sobre sua história entrelaçada à da comunidade LGBTQIA+. A Bruxa foi até mother de sua própria house (grupos de pessoas que se juntam para competir nos balls), a Casa de Cosmos, que teve participação de Organzza, primeira vencedora do Drag Race Brasil.
“Nos meus primeiros clipes, eu mesma que fiz minhas roupas, minha cenografia, todas as minhas capas, tive fotógrafos, amigos, que colaram. A Organzza, antes de ser a Organzza coroada, fez minha roupa de ‘Witch Cxnt’.”
Em 2017, a artista passou a fazer parte da house Xtravaganza, conhecida por suas diversas participações na cultura pop, sendo apadrinhada por José Xtravaganza, conhecido principalmente por coreografar “Vogue”, da Madonna - alguns anos depois, José foi protagonista de um movimento especial na carreira da Bruxa.
“Depois disso, em 2020, antes de estourar a pandemia, no baile, o José veio com essa ideia de me nomear como Legendary Princess e eu não esperava”, afirma: “E esse é um título que fala sobre representação também, de ser uma liderança da house, em outro continente”.
Ao longo desses 9 anos, a Bruxa Cósmica também tornou-se uma das principais performers do ciclo underground brasileiro. Apresentando-se em festas como a Mamba Negra e a Lâmina, a Bruxa construiu seu legado - inclusive tornando-se parte da banda Teto Preto, fundada por Laura Diaz, também fundadora da própria Mamba Negra.
Finalizando nossa conversa, a Bruxa revela que não faz mais parte oficialmente da Teto Preto, avisando que fará parte de mais alguns shows, mas, logo mais, ser retirará para ter esse foco na sua carreira solo. Para ela, esse momento também simboliza algo, uma ruptura com o conhecido, o confortável, em direção às suas novas oportunidades.
“Está sendo uma escolha que não é fácil, de abrir mão desses lugares que são de um certo conforto, mas, quero me entregar inteira”.