Digestivo “segue o fluxo”, e cria seu próprio organismo: Em seu segundo álbum de estúdio, “Mofo”, a produtora e artista visual paraense constrói sua própria visão de música experimental e desvenda sua Amazônia pessoal
Texto e entrevista por Pedro Paulo Furlan.
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São Paulo / Ananindeua, 18h. Alguns meses após o lançamento de seu álbum, “Mofo”, a produtora, performer e artista visual Digestivo senta comigo para conversar. Originária do Pará, mais especificamente da periferia de Ananindeua, Distrito industrial, Digestivo sabe o que é estar às margens, e encontrou na arte a maneira de expressar suas vivências.
“Não me sinto muito a vontade, livre para me expressar sempre, acho que me sinto mais livre no meu próprio trabalho”.
Digestivo, nome artístico, lembra de ser artista desde criança e fomentar esse sonho também desde então. Na busca por maneiras de expressar suas movimentações internas, desde seus sentimentos à sua identidade como pessoa não binária, ela encontrou as diversas formas de arte que executa hoje em dia.
Agora, em seu segundo álbum de estúdio, intitulado “Mofo”, Digestivo se coloca como uma potência não só do underground, mas, também da música experimental brasileira. Colocando-se a frente como uma transmissora de mensagens que falam muito sobre o que é produzir no Brasil, além de todos os seus fluxos pessoais.
“‘Mofo’ prolifera, e prolifera não só nas outras pessoas, mas, também enquanto linguagem”, Digestivo me explica sobre seu mais recente álbum, acrescentando: “Sinto que consegui entregar um álbum que vai para além de um álbum de música, é um álbum de arte”.
Onde nasce o Mofo?
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Quando eu pergunto para ela de onde vem o nome Digestivo, a artista ri e me explica: “queria um nome para o Instagram que fosse babado”, conta ela, me dizendo que testou diversos órgãos do corpo, identificando-se com Digestivo, por fim. Apaixonada pelo conceitual, a produtora afirma que a decisão final contribuiu para a criação de seus conceitos, além de tornar-se um nome de fácil lembrança.
A escolha de seu nome artístico acompanhou o momento em que a produtora decidiu tornar-se artista oficialmente. Ao entrar na faculdade de artes visuais aos 19 anos, Digestivo começou a produzir a partir dali, em 2016, começando pela fotografia, apaixonando-se pela performance em 2018 e pela produção musical em 2019.
Creditando seu começo na música à produtora venezuelana Arca, uma das maiores figuras do underground internacional, Digestivo me conta que após vê-la apresentar-se no Festival Yaga, apaixonou-se pela ideia de criar música eletrônica. “Comecei a colocar isso nas minhas performances”, relata, “misturei performance e música, duas paixões”.
No entanto, a conexão entre Digestivo e a arte começou muito antes. Quando nova, a artista, que tem 28 anos atualmente, morou no interior do Pará, perto da comunidade Nazaré do Mocajuba, em Curuçá - nesse lugar, Digestivo conheceu um fotógrafo que havia viajado para lá para fazer um trabalho, e que a inspirou a sonhar com uma carreira artística.
“Esse primeiro contato que eu tive com ele me fez pensar que aquilo era o que eu queria também, virar fotógrafa”.
Conhecer esse fotógrafo, que virou seu professor na Universidade Federal do Pará, foi o momento em que Digestivo percebeu que tinha que virar artista. Mas, ela não parou na fotografia, decidindo, no entanto, construir um mundo só seu através das artes visuais, performances e, é claro, produção musical.
“Mofo”, Digestivo me conta, foi o momento em que ela conseguiu solidificar esse sonho de viver de sua música, também. Produzido ao longo de três anos, o período após o lançamento de “Visceral”, seu primeiro álbum, o disco foi apresentado ao público de pouco a pouco, durante suas performances, turnês e até mesmo sua dissertação de mestrado.
“Tive várias eras, vários processos enquanto produzia ‘Mofo’, fui produzindo com o tempo, fui seguindo o fluxo, seguindo as minhas vontades, o que estou sentindo”.
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O fluxo digestivo
Formada em artes visuais, com pós-graduação e mestrado na área, Digestivo dedicou a carreira acadêmica para estudar seu processo criativo e sua própria maneira de criar suas artes. Em uma de suas pesquisas, a produtora musical descreve sua produção como um fluxo, interpretando a si mesma como um corpo em fluxo, sempre seguindo “o que eu estou sentindo, as minhas vontades, sabe?”.
“É uma poética minha, de como eu me sinto diante outros artistas, diante de um olhar que é para além do que eu consigo enxergar, para além do que o outro está enxergando. Gosto de deixar algo muito aberto”.
Inserindo a si mesma em todos os aspectos de sua arte, a expressão de Digestivo se estende da sua sonoridade às suas habilidades performáticas a até suas próprias roupas. A artista destaca, inclusive, a criação de um universo, de um mundo onde a Digestivo existe em sua forma completa, como parte principal de seu ethos artístico.
“Tento criar uma ambientação como se fosse de outro universo”, Digestivo me explica, afirmando que seu primeiro passo é decidir o universo em que ela se materializa naquele momento. Para suas performances, esse mundo é criado mesclando a sua produção musical, o espaço em que está ocupando e até mesmo seus passos como corpo.
“Nesse outro universo eu me crio, me materializo em um ser, uma criatura, um organismo e começo a interagir com esses elementos que eu crio, que são esse bioma”.
Além de produtora musical e performer, Digestivo também tomou para si a responsabilidade de confeccionar suas próprias roupas para suas apresentações, de maneira a completar o universo em que a persona vive. A artista, que sempre teve uma paixão por moda, vê suas peças como partes de sua performance, combinando com a narrativa que está contando.
Criando pedaços de nuvens com espuma de fibra siliconada, e produzindo vestimentas a partir deste material, Digestivo materializa a propagação de sua arte e, ao mesmo tempo, seu status de irrealidade.
Ao construir suas próprias vestimentas e estilos, algo que existe desde que ela era dona de um brechó, que vendia na frente de sua casa, a artista completa a visão de sua persona, que é, ao mesmo tempo, uma fantasia e uma expressão total e completa de sua realidade - unindo personalidade e ambiente, incluindo uma pitada da cultura nortista.
O organismo da Amazônia
“Percebi que o trabalho de um artista não é só sobre ele, tem toda uma cultura em cima”.
Respondendo minha pergunta sobre seus próximos passos como artista, Digestivo me explica a ideia central da nova fase de sua produção: “Quero falar das origens”. Além de sua própria perspectiva, a artista - que centraliza sua criatividade na autoexpressão - quer falar sobre a Amazônia, inserindo o ambiente onde cresceu em sua arte.
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Até o lançamento de “Mofo”, a arte de Digestivo descreveu seu universo interno, “minha cabeça em caos”, como ela mesma explica, mas mesmo em “Mofo”, a artista decidiu incluir de pouco a pouco elementos da cultura nortista. Com instrumentos amazônicos e sons do ecossistema, a produtora trançou a Amazônia em sua música.
Daqui para frente, o plano é intensificar essa representação amazônica no seu trabalho - “sou da Amazônia, estou fazendo música eletrônica, o que eu faço é parte da cultura nortista”, afirma. Destacando sua presença na cena paraense, Digestivo afirma a importância de se ver como uma pioneira e, dessa maneira, traçar seu próprio caminho, trilhando a linha entre o que já existe e o novo.
“Acho que eu estou tendo noção das coisas só agora”, Digestivo me fala, explicando que foi aos poucos que conseguiu perceber o caminho que queria seguir com sua música. Agora, decidida em explorar diversas sonoridades e trançar nelas os sons do ambiente onde cresceu, a produtora se prepara para lançar seus próximos projetos.
“Estou muito nessa pegada de continuar o experimental, deixar bem mais dançante, mas, explorar algo mais BR, assim, mais Brasil, brincar com o tecnomelody”.
Com dois próximos álbuns em mente, Digestivo pretende continuar a contar a história de sua auto-materialização, mas agora com nova importância. Apaixonada pelo tecnomelody, “impossível um paraense não gostar”, estilo de música eletrônica tradicional da região Norte, a artista planeja incluir o som nesses dois futuros projetos.
“O sonho é lançar dois álbuns sobre a Amazônia, um com designs da Amazônia e um que mescla isso com outras culturas brasileiras, e me jogar nessa cena para fora”.