Vetor Entrevista: Ivi Maiga Bugrimenko
- vetormagazine
- 2 de dez. de 2024
- 11 min de leitura
Texto e entrevista por Leo Felipe
Fotografia por Ivi Maiga Bugrimenko

O termo cena se refere ao conjunto de práticas, valores, estilos e interações sociais que formam um ambiente específico dentro de uma determinada comunidade. As cenas são compostas por grupos de pessoas que compartilham interesses, atitudes e modos de vida, muitas vezes expressos através de música, arte, moda ou comportamentos que trazem um forte senso de identidade e pertencimento. É por essa razão que a visualidade tem papel determinante em toda cena.
Para a nossa sorte temos Ivi Maiga Bugrimenko! Nos últimos anos, ela tem se dedicado de maneira quase obsessiva a documentar a cena “underground” de música eletrônica, punk e experimental de São Paulo, não apenas passivamente documentando a sua ocorrência, mas ativamente fazendo com que ela aconteça.
Ivi acaba de lançar seu primeiro fotolivro Vidacobra.

Conta um pouco sobre o início da tua atuação como fotógrafa. Os rolês já estavam lá desde o começo?
Comecei a fotografar em 2016, pouco depois da morte do meu pai, em abril. Enquanto organizava a casa com minha mãe, encontrei uma câmera analógica antiga da Fuji, que ele usava para tirar fotos da família. Notei que ela ainda tinha metade de um filme não revelado. Peguei a câmera para completar o filme e descobrir o que ele havia registrado.
Na mesma época, comecei a frequentar eventos experimentais em São Paulo, como os promovidos pelo Cacá [o músico e artista visual Carlos Issa], do Objeto Amarelo. Foi um período de muitas descobertas, porque passei a conviver com pessoas ligadas ao cenário cultural da cidade, incluindo artistas e fotógrafos da cena underground, como a galera da Feira Plana e ex-integrantes da MTV.
No início, eu saía com a câmera sem intenção específica, registrando o que aparecia: eventos, pessoas e momentos do cotidiano. Em 2017, além da câmera analógica, resgatei uma câmera digital antiga. Ela tinha um filtro chamado "tempestade de areia", que dava um efeito preto e branco com bastante grão. Comecei a usar essa câmera para registrar os rolês, especialmente por ser mais econômico do que fotografar com filme.
Foi nesse período que criei o Instagram Socialixo, brincando com a ideia de uma "socialite do lixo". Minha intenção era destacar o que geralmente passava despercebido ou era considerado "feio". Nunca foi sobre criar retratos documentais; era o meu olhar sobre o que me chamava atenção. Esse período foi um marco de experimentação para mim, e muitas das fotos refletiam o ambiente punk e experimental que eu frequentava.
O que determina se a foto será analógica ou digital?
A escolha entre analógico e digital sempre foi consciente. A câmera analógica, com sua lente de 35mm, é mais fechada, ideal para enquadramentos próximos. Já a digital tem uma lente mais ampla, permitindo quadros maiores. Além disso, o preto e branco da digital destaca forma, volume e sombra, enquanto o analógico, por ser colorido, é usado para imagens em que as cores são preponderantes. Sempre gostei de fotografar em preto e branco com a câmera digital.
Além de dialogar com a estética das cenas subterrâneas e do retrato clássico dessas culturas, o digital também me permite maior quantidade de cliques. Por outro lado, a câmera analógica funciona bem para retratos, algo que fui aprendendo e ajustando com o tempo.
Uma coisa que me incomoda é quando alguém coloca um filtro preto e branco em uma foto minha em cores. Detesto isso, e é a única regra que sempre mantenho: não mexer na essência da foto.

Comenta um pouco sobre as tuas influências.
Esteticamente, as fotos têm influências claras. O meu interesse pelo preto e branco dialoga muito com a escola japonesa dos anos 60, especialmente a revista Provoke e fotógrafos como o Daidō Moriyama. Eles tinham esse olhar para os cantos esquecidos, para os detalhes brutos da paisagem. Por outro lado, os retratos trazem uma intimidade que lembra mais Nan Goldin. É um mix de referências, algo inevitável para quem cresceu e se formou nos anos 2000. Não acho que estou criando algo novo, mas sim remixando e imprimindo a minha visão nesses contextos.

E a chegada na Mamba Negra, como foi?
Em 2017, eu estava fotografando há cerca de um ano e meio, completamente imersa nos rolês, postando muitas fotos no meu Instagram e recebendo um retorno positivo de amigos. Apesar disso, eu ainda não me via como fotógrafa profissional. Eu tinha outro emprego e nenhuma pretensão nesse sentido. Fui chamada para fotografar uma Mamba a convite da Laura Diaz, em 2017, junto com outro fotógrafo. Esse teste foi decisivo, e desde então nunca mais saí. Esse momento marcou o início de um novo capítulo, embora, no começo, eu ainda não tivesse plena consciência do que isso significava.

Creio que a sua chegada – que coincide mais ou menos com a da Euvira, da Valentina Luz, das performances da Coletividade Namíbia – foi um ponto de inflexão no rolê.
Acho que acabei criando uma identidade visual para os rolês underground, especialmente por dar uma cara analógica a essa cena. De alguma forma, sinto que tenho uma responsabilidade nisso, talvez até um mérito – não sei se "mérito" é a palavra certa. Na época, a maioria das pessoas que fotografava com analógico em São Paulo era de um perfil mais diurno, vamos dizer assim. Não eram pessoas que frequentavam tanto a noite, os rolês alternativos.
Percebo que o que eu fazia era algo único naquele contexto, mesmo que eu não tivesse essa consciência na época. Hoje, muitos fotógrafos que vieram depois já me disseram que começaram a explorar essa estética após verem o meu trabalho. Isso me deixa feliz. Acho que foi um encontro fortuito entre a estética analógica, o momento e o fato de eu estar inserida em um rolê tão interessante e visualmente rico.

Foi uma conexão imediata?
Elas gostaram do meu trabalho, e isso foi muito especial. Sempre sou grata, porque foi realmente um grande encontro. Mas é engraçado porque eu nunca me vi exatamente como parte do coletivo. Para mim, a Mamba sempre foi a Laura e a Cashu. É claro que existe toda uma rede capilarizada em torno delas, mas eu não me enxergava como parte. No início, nem sabia se seria chamada para fotografar as próximas festas. Ficava nessa incerteza até que, no final de 2018, mais de um ano depois de começar, a Cashu me disse: "Você sabe que você é da Mamba, né?" Foi só então que compreendi meu lugar ali. Isso foi importante, porque no início nosso vínculo não foi baseado na amizade. Era algo mais profissional e orgânico, o que traz mais valor para esse reconhecimento.
Antes de fotografar na Mamba, eu já tinha ido a algumas festas do coletivo, mesmo sem estar muito ligada à música eletrônica na época. A transição aconteceu a partir de 2016, quando comecei a frequentar mais rolês. No início, fotografar nesses eventos era uma experiência bem diferente. Quando você não está lá com uma função específica, pode ser desconfortável tirar fotos, especialmente sem autorização. Meu estilo sempre foi muito rápido e intuitivo, sem interferir no que está acontecendo – algo próximo do documental, mas mais espontâneo. Desenvolvi bastante minha visão periférica, o que me ajuda a captar momentos e, às vezes, até evitar interações indesejadas.Com o tempo, fui me tornando uma figura conhecida nos rolês.

E o que te chama a atenção nas festas?
No ambiente eletrônico as pessoas sabem que estou com a câmera e, às vezes, até "performam" para serem fotografadas. Isso acontece muito, mas eu nem sempre registro essas performances – depende muito da pessoa ou da situação. Para mim, a escolha do que fotografar é muito instintiva, guiada por elementos como montação, roupas e o que aquilo representa no contexto do evento como um todo.
Gosto muito de fotografar as pessoas que estão sempre nos rolês, porque acho importante registrar essas personagens da noite. Não são necessariamente DJs, produtores ou pessoas que trabalham, mas sim gente que frequenta as festas e que, de alguma forma, são a essência da coisa.
Tenho retratos de pessoas que acompanho ao longo do tempo, várias imagens delas em festas diferentes. Essa constância cria um registro que mostra como essas pessoas também são um corpo ativo e essencial na construção daquele coletivo. Afinal, o rolê não é só sobre a música ou a produção; é sobre quem está lá, se entregando e se conectando de alguma forma com aquele espaço. São essas pessoas que tornam tudo tão único.

A moda é um elemento bastante presente nas fotos, você acha que isso tem a ver com a sua formação?
Sim, acho que sempre tive esse olhar voltado para a moda, talvez por causa da minha formação inicial. Fiz moda porque me interessava por essa relação com a imagem e a identidade, embora hoje em dia eu não tenha vontade de trabalhar na indústria – prefiro manter distância. Ainda assim, algo que sempre me fascinou é essa ideia de se montar para sair, de criar uma máscara ou uma persona para aquele momento.
Embora eu mesma nem sempre me monte, observar como as pessoas escolhem se apresentar é algo que me atrai, especialmente nos rolês. Trabalhei com figurino por um tempo, o que reforçou ainda mais esse interesse. Cada espaço tem suas nuances: nos rolês eletrônicos, por exemplo, a montação é mais extravagante, enquanto no punk e no experimental, as escolhas de estilo têm outros tons – muito preto, muito couro. Por isso, as fotos em preto e branco funcionam tão bem nesses contextos, destacando texturas e formas.
Percebo que no Brasil há uma intenção visível de ser fotografado nos rolês, algo que nem sempre acontece em festas eletrônicas em outros lugares, como na Europa, onde há mais restrição quanto às câmeras. Aqui, é quase como se houvesse um acordo implícito: as pessoas se montam esperando ser fotografadas, e nós, fotógrafos, captamos essa energia. Esse pacto informal é parte do que torna os rolês tão únicos e interessantes para documentar.

E o livro? Esse projeto teve uma longa gestação e finalmente saiu.
Esse livro tem uma história que remonta ao momento em que eu e o Lucas [Lucas K, fundador da editora Quadradocirculo e editor do livro] nos conhecemos, em 2018. Ele foi uma das primeiras pessoas que deu valor para as minhas fotos em preto e branco tiradas nos rolês eletrônicos. Isso foi importante porque, para ser sincera, essas fotos nunca foram muito valorizadas dentro do contexto das festas. Elas quase nunca eram postadas nas redes oficiais dos eventos, com exceção de algumas ocasiões na [festa] Obra, que tinha uma estética mais alinhada a esse tipo de imagem. A própria Cashu comentava que o rolê da Mamba era muito colorido e que as fotos em PB não traduziam tão bem a energia visual da festa. Ainda assim, eu continuei fazendo porque sentia que era parte do meu olhar artístico. O Lucas, com o olhar dele, foi quem enxergou o valor desse trabalho e ajudou a criar um fechamento para ele.
Desde 2019, a gente começou a idealizar a ideia de fazer um livro. O primeiro formato surgiu para um edital do CCSP, chamado "Máscaras sobre Máscaras", durante a pandemia em 2020. Esse projeto não foi selecionado, mas o Lucas seguiu pensando em formatos, refinando a ideia ao longo dos anos.
O conceito do Vidacobra nasceu como um desdobramento de todas essas tentativas e ideias. Em 2023, quando a Mamba completou 10 anos, surgiu a oportunidade de fazer algo comemorativo que envolvesse minhas fotos e a história do coletivo. Inicialmente, pensamos em uma publicação em parceria com o Estúdio Margem, mas por questões de orçamento, o projeto não se concretizou. Foi aí que decidimos canalizar o esforço para um livro que englobasse não só as fotos da Mamba, mas também outras séries em preto e branco.
O processo de seleção foi intenso e colaborativo. Eu comecei fazendo uma pré-seleção, mas o Lucas teve acesso total ao meu acervo – que inclui mais de 10 mil fotos, sendo pelo menos 5 mil em PB. Ele mergulhou nesse material, fazendo escolhas e refinando o olhar do livro. O título Vidacobra foi ideia minha, inicialmente como uma brincadeira com o meme “Life snake", mas acabou ganhando um significado mais profundo. 2023 foi um ano muito difícil para mim, marcado pela doença e pelo falecimento da minha mãe. O título se refere não só à cobra da Mamba, mas também à "cobra da cobrança", a dureza de ser adulta.
É um trabalho que tem um caráter profundamente coletivo, envolvendo não só as pessoas retratadas, mas também as relações que construí com os rolês e essas pessoas ao longo dos anos. A intimidade com os ambientes que fotografo é algo que valorizo muito. Não me vejo como uma fotógrafa invasiva – para mim, criar uma relação com o espaço e as pessoas é essencial para capturar algo genuíno.

A festa de lançamento do livro foi maravilhosa, mas dava para sentir no ar uma certa nostalgia, um sentimento de que as coisas mudaram e nunca mais serão as mesmas. Isso reflete inclusive na estética das festas, que hoje é totalmente outra. Com essa carga biográfica e documental fortíssima, acho que Vidacobra encerra um ciclo, você concorda?
A ideia de que estamos vivendo uma "espiral do tempo", com transformações contínuas e ciclos de mudança, reflete muito bem a maneira como os ambientes de festa também mudam. O livro, nesse sentido, não só documenta um momento específico dessa cena, mas também carrega a carga simbólica de ser um ponto de transição. Ele capta a essência de uma fase que já não é mais a mesma, e ao mesmo tempo, antecipa o que vem pela frente.
Essa mudança na escala das festas, de eventos menores e mais íntimos para grandes produções massivas, parece ser uma característica de vários movimentos culturais que passaram por transformações parecidas. Agora as festas estão voltando para os clubes, e essa mudança não é apenas espacial, mas também política. Em um cenário assim, a fotografia, como forma de arte, tem a capacidade de documentar e traduzir as nuances dessa transformação.
O livro funciona como um registro e uma reflexão sobre a mudança. Quando as pessoas olham para essas imagens, elas não só capturam um momento, mas também percebem que algo importante foi perdido e, ao mesmo tempo, está sendo reconstruído de uma nova forma. Acho que isso traz relevância para a obra, pois ela não apenas documenta a cena, mas também participa ativamente da mudança desse cenário, registrando não só o "como era", mas também o que está em processo de ser.

Vidacobra foi um dos contemplados pelo prêmio Zum de fotolivro, um reconhecimento importante para o seu trabalho. Quais são os próximos passos?
Eu dou aula também, no Galpão Comum, junto com a Helena Ramos. A gente apresenta como o fotógrafo se coloca como artista, o que é ser um fotógrafo artista e a diferença em relação ao fotógrafo comercial. Às vezes, essa diferença é bem nítida, porque o fotógrafo artístico tem um olhar mais expressivo, um olhar autoral — embora eu não goste muito dessa palavra. Sempre trabalhei com empregos paralelos e nunca vivi exclusivamente da fotografia, o que me permitiu manter a fidelidade ao que quero fotografar e ao meu próprio olhar.
O prêmio do fotolivro foi um super incentivo para pensar sobre o valor do meu trabalho e me fez alcançar públicos que não me conheciam. Foi interessante ver que meu trabalho trouxe novidade para jurados que não sabiam quem eu era, já que eu sou mais conhecida num nicho. O que estou fazendo no momento é expandir minhas conexões e mostrar meu trabalho em novos lugares, me inscrevendo em projetos e pensando em extrair novos recortes, encontrar novos temas. Acredito que o bom fotógrafo não é só aquele que fotografa, mas o que sabe combinar as imagens que já criou para construir uma narrativa e isso me deixa animada com a ideia de voltar para o meu acervo que tem mais de 10.000 fotos e investigar novas relações entre essas imagens que já existem.
E eu ainda quero fotografar as festas, porque acho que existe uma mudança interessante de cenário acontecendo, e depois disso sei que, na hora apropriada, novos temas virão ao meu encontro.

Leo Felipe trabalha atualmente no mercado de arte, mas já foi dono de bar, cantor de banda punk, DJ, produtor de festas, radialista, apresentador de TV, pesquisador acadêmico e curador. Entre seus livros, destacam-se a sex shop de drugs & food (Quadradocirculo, 2023) e A história universal do after (nunc, 2019), que foi traduzido para o espanhol e lançado, em 2022, pela editora argentina Caja Negra. Um de seus capítulos foi publicado, em inglês, na edição #132 Black Rave do e-flux journal.