Siamese abraça sua eu interior em seu álbum de estreia
De Curitiba a São Paulo, Siamese continua a solidificar seu espaço na música atual, explorando gêneros e sons que abrangem todas as suas versões
Texto e entrevista por Pedro Paulo Furlan
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Fotografia por Vitor Augusto
11h30, São Paulo. Exatamente uma semana após o lançamento de seu álbum de estreia, sentei com Siamese para essa entrevista. No rooftop de seu prédio aqui em São Paulo, a artista atendeu minha ligação, aproveitando o vento em seu cabelo e o leve sol que iluminava a cidade, para a qual Siamese se mudou recentemente.
Originalmente de Andirá, no interior paranaense, a cantora de 34 anos começou sua carreira artística em Curitiba, mas, a mudança para São Paulo chegou como uma forma de buscar novas oportunidades para continuar sua ascensão.
“Senti que em Curitiba eu bati no teto de possibilidades, então, para conseguir alçar voos maiores, aumentar minha audiência e minha voz, tinha a necessidade de estar aqui”.
Neste novo período em São Paulo, Siamese trouxe toda sua pesquisa musical vinda de anos na cena underground de Curitiba - descrita pela cantora como “uma cena efervescente que precisa de um holofote de projeção nessas artistas” - e construiu seu primeiro álbum de estúdio, intitulado “Siamese”, que foi lançado em 14 de novembro.
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Fotografia por Vitor Augusto
Explorando diversos gêneros musicais, inclusive muitos que não estavam presentes nos seus oito anos de carreira, Siamese diz que o álbum nasceu da sua vontade de mostrar todas as suas cartas neste primeiro encontro dela com o novo público.
Esse foi o motivo profissional por trás do som do disco, ela me conta, mas o pessoal vem de um lugar muito mais profundo. Seu momento de mudança para São Paulo também veio junto ao início de uma “nova puberdade” para Siamese, relacionada ao início de sua transição hormonal.
Como travesti, a artista se viu, durante a produção do disco, num lugar de novos processos físicos e mentais, que a levaram a relembrar as sonoridades que estiveram presentes durante sua primeira puberdade - e são esses que marcam presença em “Siamese”.
“Como eu estou vivendo essa nova puberdade hormonal, só que agora de uma forma madura, consciente de quem sou e aonde vou, queria fazer algo de que me orgulhasse sonoramente e me lembrasse, de uma forma nostálgica, da minha primeira puberdade”.
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Fotografia por Vitor Augusto
Mas, afinal, como nasceu “Siamese”?
Siamese foi para Curitiba se formar em Tecnologia em Produção Cênica pela UFPR, curso no qual aprendeu sobre elaboração de projetos, marketing e gerenciamento - todas habilidades que a artista pôs em ação para se tornar artista. No entanto, ao chegar na capital paraense, a cantora ainda não aceitava esse sonho, focando em outras áreas, até conhecer sua namorada, Aurora.
"Sou artista por esse incentivo dela”, me conta Siamese. Em um namoro transcentrado, a artista comenta que foi Aurora que a deu a confiança que ela precisava para abraçar este sonho, decidindo, a partir deste pontapé, pesquisar sobre a possibilidade de se tornar artista e sobre todos os passos para ter uma carreira de sucesso.
Desde o início de sua carreira como cantora, Siamese e Aurora trabalham juntas na direção criativa de seus projetos, inclusive com Aurora assinando a direção criativa do álbum junto a Siamese, e sendo a responsável pelos roteiros, direção e edição dos videoclipes do disco.
Em 2017, Siamese lançou seu primeiro EP “Som do Grave” e, com esse projeto, já começou a tomar a cena underground de Curitiba. Focada no hip-hop, “porque era o meio em que eu estava inserida, os produtores musicais que eu conhecia, além de ser uma cultura que sempre me envolveu”, a artista iniciou sua carreira se apresentando e construindo um público local.
Foi assim que sua carreira na capital paraense foi se expandindo. Conhecendo pessoas como Clementaum, produtora que, inclusive, está presente no seu álbum de estreia, Siamese construiu seu próprio espaço, inclusive chegando a fazer shows com sua música fora da cidade, indo, por exemplo, para Brasília se apresentar.
“Sou muito grata por tudo que eu construí em Curitiba, construí o meu nome, construí uma fã base. Sinto que meu trabalho foi bem acolhido, além de tudo, porque era um momento em que outras artistas LGBTQIAPN+ também já estavam se posicionando”.
Citando como inspirações Rico Dalasam, Liniker e Linn da Quebrada, Siamese afirma que, com a presença dessas pessoas, ela se sentiu cada vez mais confortável fazendo música, encontrando seu lugar. Nos anos seguintes, a artista lançou mais um EP, “Overdose”, que inclusive conta com participação da rapper Boombeat, uma de suas amigas até hoje.
Nesse ano, Siamese também fez parte do álbum “METamorFOSE” de Boombeat, na faixa “Machucai”, a primeira cypher de rap só com artistas travestis: Boombeat, Siamese, Sodomita e Tonny Hyung. “Foi muito gratificante, ver esse poder da força trans, da nossa potência, da nossa excelência linguística e lírica, mesmo, ver nossa diversidade e versatilidade também”, conta ela sobre a experiência.
Após conquistar Curitiba, Siamese, como já falamos anteriormente, sentiu necessidade de se mudar para São Paulo. Mais próxima geograficamente de outros artistas, DJs, produtores e inserida em uma cena nova, a artista decidiu se dedicar à produção de seu primeiro álbum de estúdio, “Siamese”.
“É engraçado, São Paulo te dá a oportunidade de conhecer as pessoas de frente a frente. Essa mudança foi importante, para as pessoas me verem tentando, trocando ideia, sendo gente normal, assim, sendo seu CPF para além do seu CNPJ”.
Em contato físico com os produtores Badzilla e Clementaum, que assinam algumas das faixas em “Siamese”, além de Tirado, responsável por 8 músicas do disco, a cantora trocou muitas ideias, construiu o conceito de seu primeiro álbum e desenvolveu as músicas, tudo nesses estúdios aos quais ela não tinha acesso fácil em Curitiba. Decidindo abraçar essa sonoridade eclética junto a diversos produtores, a artista decidiu também que iria ser a única voz no álbum, escolhendo expor tudo de si.
“Tudo que está ali foi bem pensado, cada sonoridade, cada tom. Queria apresentar uma Siamese em essência, para que as pessoas entendam qual minha inquietação artística e se identifiquem com a minha beleza e estranheza também”.
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Fotografia por Vitor Augusto
O álbum em si
Com 10 faixas, “Siamese” é uma junção de muitas sonoridades, indo rock ao pop punk, ao funk, ao boombap e ao pop mais “tradicional” - no entanto, como falei para a própria Siamese, a assinatura dela está em todas as músicas. Mesmo explorando outros gêneros musicais, a personalidade da artista transborda.
“Quis trazer ritmos que me influenciaram para construir essa personalidade transgressora que é a Siamese”, explica a artista. No seu álbum de estreia, que abre com a faixa de rock “Minha Vez”, Siamese faz questão de deixar bem claro ao público quem ela é, e quais seus objetivos.
“Não via possibilidade de ser uma travesti cantando rock, mas, no meu disco, eu decidi que ia. Por isso, criei ‘Minha Vez’ - essa é uma faixa de força, um som que me bota para cima”.
Ao longo das outras faixas, Siamese continua com o mesmo poder, mas, maneira na agressividade, populando o álbum com músicas de pop, afrobeat e funk, para também acolher seu público. Com composições encorajadoras, valorizadores e cheias de flerte, a artista construiu um disco que conseguisse agradar inúmeros gostos.
Outra das músicas de destaque do disco é “Vulcão”, por sua produção de BADZILLA e Clementaum, conterrânea e amiga próxima de Siamese. A produtora musical, que colabora musicalmente com Siamese há anos, inclusive é quem a colocou no remix de “AMEIANOITE”, no álbum “After”, de Pabllo Vittar.
“Assim que ela [Clementaum] recebeu o convite, ela fez o beat e me mandou e pediu para eu desenrolar uma letra e foi maluco por que a Pabllo e a Gloria [Groove] são dois dos meus maiores ídolos do mundo”.
Em “Vulcão”, Badzilla e Clementaum juntam suas produções características, criando uma faixa de eletro-funk que cresce com os versos, puxando o ouvinte com sua produção dinâmica e sua composição cheia de flerte.
No entanto, o álbum também conta com momentos cheios de emoção, falando sobre sua sua experiência como travesti preta e artista independente. O boombap “Desabafo”, no final do disco, relembra das origens da carreira de Siamese, e versa sobre as complicações presentes em uma carreira que não é amparada por uma herança financeira.
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Fotografia por Vitor Augusto
“‘Desabafo’ é minha visão de mundo, sobre a música. Tem gente que sabia que já tinha um espaço reservado, independente da profissão, e para minha realidade não era bem assim - busquei trazer isso, minha visão como travesti preta, fazendo rap, fazendo música”.
“Siamese” termina com um de seus momentos mais intensos: a faixa “Forte”. Composta como uma homenagem para sua família, especialmente para seu pai, que faleceu de câncer, Siamese rima sobre não desistir e sobre como ela vai sempre ser ela mesma, além de declarar seu amor por sua família.
“Cantei o refrão para meu pai no leito de morte dele, falando que eu sei que sou forte, mas que vou me permitir sentir tudo. É sempre importante viver, deixar fluir as lágrimas, para saber que tudo é passageiro, e se apegar às coisas boas que a nossa construção social tem a oferecer”.
“Sou ambiciosa, quero ocupar lugares onde dizem que não vou estar”
Como prometeu em “Forte”, Siamese continua sólida em seus sonhos e sua trajetória. Crescendo no underground de Curitiba e ocupando seu espaço na cena paulistana, a artista destaca a importância dessa cena e da inspiração criativa que ela oferece ao mainstream - no entanto, aponta que seu sonho é atingir um público cada vez maior.
“Sim, nós artistas underground, somos referências, nossa vivência é pauta para várias questões. E falo isso sendo uma artista que quer ser muito conhecida, quero ser uma artista de gravadora, sim, por que não?”.
Com esse sonho em mente, Siamese deixa claro para mim - e para o público que estiver lendo - que tem confiança que sua arte é abrangente. Mostrando tudo de si mesma neste disco, a cantora agora abre caminho para experimentar coisas novas e continuar descobrindo aspectos novos de si mesma.
Descrevendo o underground como “o suco do talento puro” e como sua casa original, Siamese termina nossa conversa reafirmando que se mudou para São Paulo para alçar voos cada vez mais altos e não pretende parar agora. O seu álbum de estreia é somente o primeiro passo em uma caminhada muito longa.
“Sou ambiciosa, quero ocupar lugares onde dizem que não vou estar, vou ocupar com unhas e dentes, sem ter esse acesso que muita gente tem de mão beijada e a disposição”.