“Nestas palavras expresso o meu mundo/em que às vezes eu me perco e me confundo/minha tristeza está expressa em meu olhar/minha verdade, nestas folhas a voar”. — Anderson Herzer em “A queda para o alto”.
Texto e entrevista por Alexandre Mortagua
Fotografia por Hick Duarte
O pioneirismo é solitário. Ser o primeiro em terreno nunca habitado é uma tarefa que abre marés para toda sorte de monstros. Em “Eu sou o monstro que vos fala”, o escritor e filósofo Paul B. Preciado, abre seu texto e sua presença à frente da Escola de Psicanalistas da França destruindo o velho mundo: “Eu sou o monstro que vocês construíram com seus discursos e suas práticas clínicas. Eu sou o monstro que se levanta do divã e fala, não como paciente, mas como cidadão, como seu monstruoso igual.” No confronto com os Victor Frankenstein da psicanálise, Preciado silencia os Doutores que o designaram como monstro na jaula de “gênero disfórico” e “doente mental”, e, como ele mesmo diz, “toma a palavra”. Rejeitando a posição de objeto, Preciado impõe-se como sujeito numa discussão inédita naqueles salões, possível apenas pela presença de seu corpo e do pioneirismo de seu relato. O que quer dizer relatar a si mesmo?
Bem longe da Academia e da França, em São Paulo, em 1982, Anderson Herzer relata a si mesmo no livro “A queda para o alto”. A obra autobiográfica e de poesias de Anderson “Bigode” Herzer é a primeira obra literária escrita por uma pessoa trans publicada no país. A vida do escritor e poeta reúne símbolos que representam a experiência de muitos jovens e crianças marginalizadas no Brasil. O pai assassinado, a mãe morta na primeira infância, seu talento esgotado, uma série de violências e abusos: institucional, estrutural e cultural.
“Vi a lenta corrupção,
Vi o olhar do corruptor,
Vi uma vida na destruição
Eu vi o assassinato do amor”
(Trecho do poema “A Gota de Sangue”, Anderson Herzer, A queda para o alto, 1982)
Institucionalizado pelos próprios tios na Fundação do Bem Estar do Menor (a extinta Febem) aos 14 anos, Anderson encontrou sua identidade dentro das paredes do sistema superlotado e com práticas desumanas da instituição criada para abrigar, vigiar e punir jovens de toda sorte de comportamento desviante. Foi ao encontro de si, assumindo e vivendo sua experiência transexual dentre os supostos delinquentes e agentes da fundação. Anderson, mesmo sem cometer nenhum delito, ficou sob custódia da Febem até os 17 anos, quando foi apresentado ao deputado Eduardo Suplicy, tutor de sua liberdade. Suplicy apresentou-se para um Juíz de Menor e assinou a liberdade de Anderson. Bastava um homem branco poderoso, veja só.
Primeiro homem numa ala destinada a mulheres, o ineditismo no binarismo da instituição isolou Anderson dos detidos da Febem, dentro da exposição de seu pioneirismo. Foi diminuído por ser um “homem sem bolas” e ladeira abaixo na escada das violências. Na solidão de seu ineditismo, Anderson reivindicou seu universo de autonomia a partir de seus escritos, arquitetando com suas palavras; transformando em poesia seus sentimentos e relatando seus dias institucionalizados. Arquiteto da palavra, Anderson introduz o leitor à sua vida no átrio “Depoimento”, texto que inicia sua tomada da fala e a possibilidade de nomear suas experiências e sentimentos. Anderson, enquanto ainda reivindicava seu “nome de morto”, perdeu o namorado, apelidado de Bigode, aos 13 anos num acidente de moto. No processo de tornar-se quem é e reivindicar este publicamente, Anderson adotou “Big” em homenagem ao homem que amou.
“Depoimento” funciona como um mapa que conduz o leitor nas entranhas, rumos, becos e vielas que Anderson abre para relatar a si. Ao relatar a si mesmo, solitário no pioneirismo de falar e ser ouvido, ter suas palavras publicadas e produzindo presença, Anderson enche as páginas de “A queda para o alto” num palco iluminado de luzes focais brutas, e compartilha seu interior do avesso ao falar sobre seus sonhos, seus afetos, seus relacionamentos amorosos. O que quer dizer relatar a si? Para Anderson, relatar a si em “Depoimento” quer dizer ser o único a poder a dizer o que está sendo dito.
Em seu relato silencioso-cheio-de-palavras, Anderson segue com “Poemas”, a segunda parte do livro, descrevendo sua particular autoficção sobre, novamente, seus sonhos, seus afetos, seus relacionamentos amorosos.
“Eu decaí, eu persisti/Tentei por todos os meios ser forte/Lutei contra o tempo, chorei em silêncio/Gritei seu nome ao vento/Sou filho da gota, fui tempo de miséria/Meu pai, um perdido/Minha mãe, a megera/Cresci vendo prantos,/dormi em meio à mata/Chorei gotas sanguíneas,/sou o pecado, sou a traça”
(Poema “A Gota de Sangue”, que abre “A queda para o alto)
No prefácio da obra, escrito por Eduardo Suplicy, lê-se que “a Febem nunca lhe explicou, mas ocorreu com Herzer uma transformação”. O deputado refere-se ao processo de transição que Anderson experimentava, a simples insistência de ser apenas o que se é - e isso é bastante coisa. Pontuando uma explicação desnecessária, Suplicy deixa a marca de seu tempo no texto ao se referir a Anderson com seu nome de morte, como ela e seguindo todos os protocolos de apagamento das pessoas que desafiam o número 2. Nas páginas seguintes, Anderson descreve sua transição sem referir a si mesmo como “transexual” em nenhum momento. Essa é a dureza de ser o primeiro.
Fotografia por Hick Duarte
Pelas mesmas ruas que Anderson perambulou nos seus anos de liberdade, Laura-Carne Osso, Entropia, Sarine e sua Teto Preto expandiram os limites dos terrenos físicos e mentais do que é relatar uma comunidade. Como descrito no “O show do Eu”, de Paula Sibila, a percepção do Eu e da expressão das subjetividades transmutaram no decorrer do século XX. Teto Preto e sua comunidade de artistas adaptam sua produção, métodos e práticas para viver ainda em festa no pós-pandemia, descentralizando o eu para os múltiplos dentro de d’eus. Um eu coletivo, colaborativo, que ama, fode e disputa. Desorganizada e desorganizando, é na São Paulo dos vários eus dentro de deus que começa a feitura de “Fala”.
“Teto, de certa forma, é esse farol também, né, de contestação. É como se fosse a nossa sentinela ali, assim, que a gente vai usar pra lutar por isso, assim, saca?”
Com a possibilidade de se agrupar e continuar reagrupando, Teto Preto escolhe ser um espelho de seu tempo, apontando de volta para sua trupe, suas vontades, suas revoltas, raiva e desejo. Da “metralhadora em estado de graça”, que abriu os trabalhos do primeiro álbum da banda (gravado durante as manifestações contra a Copa do Mundo 2016), à “vida que me espera transpira violência”, que abre o novo manifesto-transpofágico “Fala”, as palavras escolhidas para narrar a si mesmos e aos seus descrevem o que o mundo lá fora lhes entrega e o que eles fazem com isso. Aqui dentro, a banda não se intimida e assimila táticas de sobrevivência e permanência na indústria capitalista da música, seus hits comprados e a sabotagem de artistas LGBTQIA+. De Pabllo Vittar a Irmãs de Pau, são repetidas as restrições nas plataformas. Enquanto isso, o artista Grelo segue bombando nos charts.
Fotografia por Hick Duarte
“Você tá com investidor? Não. Então sua música não vai bombar. Ela pode ter coisas muito legais, orgânicas, tipo a Teto tem, sabe? Tipo Ana Frango Elétrico, tipo Maria Beraldo, tipo Jup.”
Em “Fala”, com vocais cheios de groove da poderosa Saskia, Teto Preto explora a pseudodemocracia que os corpos dissidentes experimentam, numa dança da capital que encolhe a quantidade de horas do dia de certo público. O “alvo (que) é sempre mais um espelho” surge numa jam, forma que a banda escolheu de experimentar o fazer música misturando instrumentos, batidas de computador e cuíca.
“Porque analisando um pouco de fora, o Teto, ele seguiu muito esse caminho, assim, de deixar um pouco o jazz ali de lado e ir pra um lugar um pouco mais agressivo, um pouco mais punk mesmo, que é um pouco também de onde a gente vem, nós três, né? E eu acho que o mais legal dessa formação de agora é que nós três também viemos desse lugar de fazer live.”
Nessa força imaterial-universal chamada música, Saskia e Teto Preto são democráticos com o ódio e vomitam o que foram obrigados a engolir. “O ódio é democrático, e eu aceito”. Bala, boi, bíblia.
“Eu me identifico muito com a Sáskia. Tipo, puta, é a Laura de 20 anos, sabe? Eu falo assim, calma, viado. Peraí, calma.” (Carne Osso sobre sua parceira nos vocais de “Fala”.)
Mari Herzer, kokobra de longa data e sobrinha-neta de Anderson Herzer, apresentou seu “Queda para o alto” para Laura por volta de 2021, quando participou da Teto Preto. Laura debruçou-se no abismo para cima do Padroeiro do “Fala” e sua grande inspiração para a obra. Anderson não teve o privilégio de se reunir com os seus em vida, mas Teto Preto, algumas décadas depois, pode levantar do divã e falar, não como paciente, mas como artistas, como seu monstruoso igual.
Em “Para sempre vou te amar”, Carne Osso declama sua declaração de amor para Loic Koutana, cantor e artista do corpo ex-membro da Teto Preto. O amor de fato não necessariamente precisa ser transformado: é pura e simplesmente percebido e assimilado na atualização da materialidade da vida. “Só me interessa o que não é meu” é a versão paulistana-contra-narcísica da Teto em referência a Oswald de Andrade, que, um século antes, andou pelas mesmas ruas que Carne Osso e Anderson Herzer deram rolê.
“Queda para o alto” e “Sem vergonha” são exemplos do domínio do som e da noção de si que a Teto Preto carrega e expande para seus colaboradores: a banda embarca na forró do fantástico Getúlio Abelha, que circula na Mamba Negra há alguns anos, para comer, mastigar, engolir e regurgitar o que foi dito mas precisa ser repetido. Saxofone, guitarra, ancestralidade terrestre e espiritual para apontar dedos aos “farsantes e alpinistas sociais” e acolher a mente e libertar o corpo que apagou no asfalto da Avenida 23 de Maio.
O primeiro single do álbum e última faixa a ser produzida por Carne Osso, Sarine e Entropia, “Te colocar no teu lugar” é sobre controle, aquele controle gostoso de exercer. O sexo da Teto Preto faz-se no corpo e na mente, no jogo de dominação que, molhado, melado e cheio de tesão, traça o plano de fuga e de dominação que desse jogo perigoso de relatar a si e estar no mundo. Cheio de tapa na bunda e soco na mente, cuspe na boca e murro na costela, Jup do Bairro toma o microfone pingando gasolina neles e vaselina nelas. O grande elenco na tela do videoclipe, que vai de Julia Costa, Okofá, Guilhermina Urze à Valentina Luz, Kontronatura e Delcu, conta o plano de dominação anal que a banda quer jogar para “os algoritmos não foderem a nossa vida”, nas palavras de Laura.
“É sobre criar perspectivas pras LGBTQIAPN+ e aliades. Sobre criar novas famílias, é sobre vida e morte mesmo, sabe?”
Em oposição ao mote capitalista de que “todos são substituíveis”, sorria, acene e volte ao seu lugar, no baile da Teto Preto ninguém se coloca no lugar de ninguém: os membros e sons são assimilados a partir das conexões e relações dos tentáculos desse monstro, dessa cobra, dessa carne, desse osso. Insubstituível, imensurável, chique como Andressa Urach, voluptuoso como Jup do Bairro e pioneiro como Anderson Herzer, “Fala” é um dos melhores álbuns eletrônicos do ano passado, expandindo o som e a estética da Teto Preto.
Em faixas que viajam em experimentação ao vivo e em certo feitiço, “Fala” é um álbum de contos de realidade, algumas fábulas que contam visões de mundo. Como quem reúne sua legião numa estratégica reorganizada para dominação e disputa, Teto Preto aproveita o caminho traçado por corpos como o de Anderson Herzer, os resistentes que vieram antes, e toca o terror.
Me põe no meu lugar, Teto Preto?